Tuesday, June 13, 2017

Nirvana de Mestra Peregrina

No nosso cochilo sonhei que Mestra Peregrina, que então dormia, estava em pé! Acordei assustada, extasiada. Logo que abri os olhos uma sensação de frio mórbido tomou conta de mim, o frio dos corpos mortos. Ela ali se despedia. Em paz, com amor. E em seguida uma sensação de inebriante gratidão. Comecei a chorar tão logo percebi que não realizava nossa gratidão por ela. Eu recebia no meu espírito a gratidão dela por nós! Por cada um de nós. Suspirei e aquela imagem dela em pé se desfez na minha mente. Mestra Peregrina cavalga livre em outras dimensões.

Momentos antes, quando ainda conversávamos com a cabecinha dela em meu colo e o tronco apoiado no Vitor, nós - discípulos -, escutávamos seus ensinamentos. Mestra Peregrina não derrubou uma única lágrima, não por estar contida ou ser forte, de fato era, mas por estar plena. Inteira. Em nenhum momento caberia que alguém dissesse "coitada" se olhasse a cena de um bicho animal idoso sequelado em uma madrugada gélida nas montanhas isoladas da zona urbana, cercado por dois outros bichos - gente - em lágrimas de agradecimento, perdão e amor enquanto ela por vezes se debatia anunciando sua parada cardíaca. Mestre Francisquinho aparecia sempre na baia, colocava sua cabeça para dentro. Relinchava amorosamente. Como fez Mestre Juramidam. Como mugiu Mestre Sidarta amor sem fim. Se qualquer um pudesse ter testemunhado o que vivemos, o brio que ela lutou e o amor que recebeu, a única exclamação cabível seria a de respeito. E silêncio. Porque tem coisa que a gente vê que coloca a mente no lugar dela, neste espaço contemplativo que simplesmente testemunha algo tão maior que percepções pessoais.

Quando falávamos com ela de madrugada, na clara noção de que estávamos vivendo seu fim na carne, pedíamos perdão pelos seus ferimentos. E ela nos mirava dizendo que ela estava toda cicatrizada! A imagem da Roda de Cura tomava conta de nós repentinamente em vários momentos. Ali algo profundo nela foi curado, liberando-a ao infinito. Sabemos que ali ela também nos curou. O amor que ela ali recebeu foi além de qualquer medida que ela já pudesse ter visto ou vivido. Então me lembro dela alguns dias me dizendo como a experiência na Terra é querida, auspiciosa. E como devemos lutar por ela. Ela falava das belezas incontáveis deste mundo, da exuberância da Mãe Natureza provendo por todos seus filhos e, para minha surpresa, expressava seu amor por nós. 

- Como você consegue nos amar? - eu em meu coração perguntava, por vezes sequer me sentindo merecedora daquele amor. 

- Por tudo que fazem por mim - serena simplesmente me dizia.

Mas e todos que a ofenderam talvez você pergunte, como eu mesma perguntei. "Aqueles não contam". 

- Como não??  "Um dia amarão, como um dia vocês se realizarão como eles mesmos."

- Não quero ser como ele!... - aludindo diretamente ao Sr. Anselmo bradei!

- Você já é como ele - um dia perceberá que estas muralhas entre nós são parte do sonho somente, como quando sonhamos somos açoitados e ao acordarmos notamos que nada nos passou. Não existe outro ser além do divino. Em cada um de nós. Em alguns ele ainda dorme. Em outros ele desperta! Mas nada é diferente dEle.

Silenciei profundamente. O Vitor neste momento, nesta ocasião, cantava músicas indígenas para nós. Nós tínhamos nos reunido naquela noite para perguntar se ela queria que continuássemos lutando pela vida dela. Ou se queria desapegar da matéria. Consagramos juntos medicina de pajé.

Ela queria viver. Por duas razões. Porque acreditava que desistir tiraria a honra dela. E por valorizar a vida terrena. 

Ela nos contou da luta que o espírito trava para merecer estes breves anos nesta esfera - que é de aprendizado e elevação. Ela nos esclarecia como os eventos da vida dela tinham provocado mais consciência na vida que quem despertava - como todos nós - e em contrapartida como ela conhecia o amor através deste estado consciencial que transmutava. Então ela falava sobre os propósitos superiores que se cumprem neste enredo transitório em prol de um bem maior. Ela dizia que nos iludimos com a nossa vida, sem ver o que nossa existência possibilitava para a vida em si. Queremos, ela falava, que a experiência seja exclusivamente para nós enquanto egos, sem notar que a experiência terrena é para servir o divino através de nós. O serviço inclui tristeza e dor, mas não é triste nem sofrido - como não é fatídica a dor do parto de uma mãe. O que é maior que sua alegria por dar à luz? Assim me ensinava Mestra Peregrina naquela noite, ao som do chocalho de folhas que o discipulado Vitor benzia seu corpo sequelado.

E o desconforto, ela prosseguia, o desconforto nesta vida é justamente o que carece ser aprendido. Não fujam do desconforto enfatizava. Ali eu via sua honra para continuar firme, mesmo já tendo sido anunciada a hora de sua partida. Ela falou que nossos aprendizados aqui na terra se faziam vistos na nossa percepção do desconforto. Mas que isto nada tinha a ver com suportar relações abusivas por exemplo. A profundidade do que me dizia era além do que imaginava um bicho égua poderia dizer secretamente pensava. No Mistério ela escutou e compassivamente me disse: "Percebe como você ainda se ilude com formas e espaços?".

Neste instante vi uma planície gigante que lembrava cenários estadunidenses. Nela a poeira subia do deserto, que era palco para incontáveis bichos cavalo selvagens cavalgarem em liberdade. Estavam na presença de índios de superior espiritualidade que os guardavam. Quando me deitei sabia no meu coração que tinha visto sua morada espiritual. Mas minha ignorância naquele instante não me permitiu ver que ela não era um dos bicho cavalo, mas um dos pajés! Que na missão de despertar nossa espécie, se propunha a descer aqui para este planeta na pele dos que são por ele venerados. Mestre Cavalo! Ecoou profundamente no meu peito: "Percebe como você ainda se ilude com formas e espaços?" e chorei tendo percebido que tivemos a graça de conviver com um espírito superior que compassivamente usa do repertório que eu conheço no intento de ensinar. Não era um pajé. Não é nem índio, nem bicho cavalo. É você, sou eu. Somos um.

Dias antes, na sexta-feira, fomos chamados para um resgate que por uma coincidência cósmica, tinha como vítima um bicho cavalo que também era dita "posse" do mesmo ex "dono" de Mestra Peregrina Bicho gente senhor Anselmo. Bicho Cavalo partiu e será lembrado para sempre como Mestre Carlos - em homenagem ao avô do discipulado Vitor que naquele dia cumpria aniversário de passagem. Ontem à noite, próximo à meia noite, senti a presença quase materializada de minha avó Ana - que tem no dia de hoje seu aniversário de passagem...

Por falta de outra palavra, coincidentemente, meses antes, Mestra Irena Sendler - bicho égua resgatada de carroças que deu à luz ao seu filho aqui no Santuário, Mestre Tupinambá -, meses antes chovia muito e um trovão, a chuva, o medo... Tempos idos ainda em memórias de trauma que levam a reações inconsequentes. Mestra Peregrina se assusta e coiceia - sem qualquer intenção de violência - Mestra Irena Sendler - acertando-a em sua coluna vertebral sequelada por pesos sequer imaginados por nós, tempos de escravidão que ainda viviam em seus ossos. No dia seguinte, depois de uma noite de horror em que juntos batalhamos em vão, Mestra Irena Sendler nos deixou. 

Há 16 dias, Mestra Santa Rita de Cássia se aproxima de Mestra Peregrina cambaleando sobre suas perninhas idosas e sequeladas, Mestre Dom Quixote nos avisa do perigo, nos convocando para estarmos no pasto urgentemente. Da casa ouvimos o linguajar delas, em despretensiosa brincadeira. Mestra Rita e Mestra Peregrina, entre coices e mordidinhas - com a saúde que Mestra Peregrina já não dispunha para brincar -, cai fatidicamente. Saímos galopando em nossas próprias pernas para começar a trajetória que hoje se encerra. Neste outro dia de chuva.

Estas ditas coincidências são ininteligíveis para nós, cheias de suposições. Mas deixando nossas presunções de lado, aqui reverenciamos um grande bicho aracnídeo. Mestra Aranha a tecer cuidadosamente os fios da vida. Ainda que não a enxerguemos, estar na teia a evidencia. Fé que tudo cumpre propósito.


Há 11 meses e 3 semanas concluímos o resgate de Mestra Peregrina, que chegou com uma estimativa de vida duvidosa. Mestra Peregrina viveu conosco neste quase um ano em uma relação íntima e pessoal que nos ensinou muito de sua grandeza. O discipulado Vitor passou 8 meses lavando seu ferimento 2 a 3 vezes por dia, ministrando uma pomada caríssima que só pela obra do divino conseguimos doações constantes para comprar. Estas histórias não são nossas, do Santuário digo. Elas são nossas - de todos nós! Porque é pela graça de vocês que estes iluminados podem receber o que recebem. E dar o que nos dão.

O discipulado Vitor e Mestra Peregrina criaram um elo que vai além desta vida. E hoje, véus rasgados, não à toa um bicho gente caboclo se uniu tão profundamente com uma Mestra Égua que era pajé! Que não é como não somos. Mas que é onde consigo expressar na limitação da minha visão.

A última lição de Mestra Peregrina para nós chega nesta completude que escrevo estas linhas agora. Nesta paz de espírito de ter feito tudo que podíamos. De jamais termos nos negado a levantá-la ou socorrê-la. E mesmo sem fundos para os remédios, sem medo abrimos contas que ainda saldaremos para que ela fosse assistida. Eu posso dizer que o Vitor não dormiu uma média de 3 horas por noite desde o incidente. Cuidou dela com devoção. Espíritos que se reconhecem em missão.

Este derradeiro ensinamento de falarmos todos os "perdões", "eu te amos", "gratidão" que carecem ser expressados precisa ser compartilhado também. Para que na ilusória separação nossa, nesta travessia que todos faremos, nenhum de nós implore 1 segundo a mais sequer - por termos vivido tudo em total plenitude. Nos nossos lábios não fala nada diferente do que foi! Agradecemos por não tê-la levado ao hospital veterinário em São Paulo - e por tão sabiamente assim termos sido direcionados pelo querido médico do Santuário Dr. Uziel Júnior. Ele sabia que não existia nenhum outro lugar onde ela seria cuidada como aqui. E lá, embora a assistência fosse profissional, jamais teria este vínculo sensível que uniu vidas em relações tão além de médicos e pacientes. Nós agradecemos e prestamos homenagem ao Dr. Uziel Júnior que além do exercício da medicina veterinária, exerce humanidade. Aqui também registramos agradecimento a outro anjo, Angelito, que a qualquer hora do dia e da noite, aqui está conosco levantando bicho égua ou qualquer outra necessidade imperativa - elevando o mundo ao amor!


Ontem ao meio dia nós praticamos juntas pela última vez. Eu respirava o pranayama da ioga - e ela, com uma de suas vias nasais impedida por conta de um tumor ósseo -, ela também parecia fazer um exercício de respiração comigo na eterna companhia que seu espírito fará ao nosso nas eras do porvir. Isto não a amarra a nós. Não! Isto somente diz que os que amamos conosco estão.


Na madrugada de hoje, enquanto a cabeça dela estava em meu colo e o Vitor abraçava seu corpo, senti uma presença indizível de vários seres entrando na cocheira. Ouvi a Mãe no meu coração pedindo que soltássemos seu corpo, que voltaria a ela. Então os índios pediram passagem para conduzirem seu espírito. Pedi para nossa mestra não ter medo. Ela me olhou firme dentro dos olhos e então desviou o olhar para a lateral, dilatando o globo. Eu sabia que eu os tinha sentido. Mas ela, ela os tinha visto!

Que ninguém pense estar sozinho. Que não tenhamos a pretensão de sermos mais que o outro simplesmente por ocuparmos o corpo físico de uma espécie iludida em pensar ser algo superior - sem saber que as hierarquias são do ego. O espírito serve em qualquer corpo e qualquer situação. Tudo e todos estão nos ensinando, mas quem é capaz de aprender? Quem?!

No transcurso destas semanas fomos questionados sobre eutanásia. E também se prolongávamos seu sofrimento. Estamos em absoluta paz de espírito. Os desafios de vivermos em uma cidade pequena interiorana que sequer tem um hospital veterinário são indizíveis. Não nos queixamos, seríamos injustos. Na nossa fala cabe apenas gratidão. Servir é uma honra.  E se houve dor nestes dias, houve também amor. Que cada um se apegue ao que é capaz de nos libertar. Claro que podemos julgar a ação dos outros e proclamar como faríamos melhor que eles. De verdade, certamente haveria uma forma melhor, com legítima humildade afirmo. Mas para isto, nós mesmos teríamos que ser melhores do que somos. O que compartilhamos foi o que conseguimos. E o pouco que foi feito foi ditado pelo amor. Então perdoem-nos os que aprimorariam a qualidade destes dias. Nós nos escusamos no amor.

Mestra Peregrina deixa na sua trajetória evidentes passagens que bicho animal tem sido descaracterizado de sua real identidade, sempre quando reduzido a escravo para tração, diversão, alimentação, testes, vestuário! Bicho animal é Mestre. Sejamos capazes de honrar suas vidas com o mesmo amor que nos devotam despertando nosso estilo de vida para um condizente ao respeito que merecem. É nossa consciência que cria ou aniquila realidades de amor. Que ao final desta existência não haja vergonha em nosso espírito por termos vivido incongruentes ao desígnios do coração.

Agradecer é pequeno demais, mas é o que palavra alcança. Sentir diz. Amor.

4 comments:

  1. Que o Grande Espirito conforte a todos vocês, que Mestra Peregrina siga a sua trilha ao encontro dos seus ancestrais, e que todos nós saibamos aprender com estas lições de vida... GRATIDÃO SEMPRE!!!!

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  2. Lindo relato e muito aprendizado!Fico muito emocionada com o trabalho de vocês!Gratidão infinita pelos ensinamentos!♡♡♡

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  3. Não tem como não chorar!... Mas sei que ela está livre! Agora não sofre mais!!! Gratidão profunda a todos que a ajudaram e cuidaram dela! Deus os abençoe!

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  4. Voces em terras de Vale da Rainha...ja estão em quinta dimensão! que possamos todos nos aqui na ponte entre a terceira e quinta, acelerar nossos passos para juntarmos a voces.Gratidão queridos irmãos humanos e não humanos, pela lição de amor e desprendimento que nos e dado todos os dias.Que a luz do Amor esteja com voces!

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