Wednesday, March 29, 2017

Ao Mestre com Amor

Cada resgate é uma vivência. Cada vida traz sua biografia e quando cruzamos caminhos com o outro sinto que universos colidem. Bem verdade que aquela vida resgatada se transforma. Mas como não dizer que nós também já não seremos os mesmos?

Mestre Cavalinho chegou em uma tarde de domingo, veio no dialeto mineiro de um caboclo em uma moto que da porteira da gente perguntou se poderíamos acolher bicho animal. O Vitor ao saber do caso prontamente comentou que precisaríamos de assistência hospitalar. Então aí começou um novo capítulo da vida dele, do Mestre Cavalinho, e da nossa. Porque nós todos fomos alterados no transcurso de algumas poucas semanas.

Tantas vezes reflito que cuidar de vidas é tão diferente do cuidado que as coisas demandam. Tudo é tão urgente, não espera. Mas ele esperava no pasto solitário, agonizando rumo à sua morte neste mundo enquanto nós nos mobilizávamos para resgatá-lo.

Já tarde demais, mas ainda sem sabermos do tempo que já se esvaia, nos encontramos com o sertanejo que nos aguardava na estrada intermunicipal. O Vitor no caminhão com o motorista atrás, distante por alguns minutos. O Angelito e eu no carro - Angelito, o anjo bicho gente que nos ajuda diariamente no Santuário.


Quando cheguei saí aos tropeços do carro e avancei correndo na direção do iluminado. Então tive que conter meu desmaio por compaixão, por me colocar na situação dele vendo alguém chegar na suposta missão de me salvar e encenando uma perda de sentidos abrupta pela gravidade da minha cólera! Suspirei invocando uma força que pensava não possuir, mas que tomou conta de mim em um destes milagres que a piedade protagoniza. Sorri para ele serena e contei histórias das terras da Rainha.

Lembro que a luz do sol permitiu que eu me visse nos seus olhos, nestes reflexos que o dia cria como arte e que nos passa estrangeira quando estamos iludidos no afã do cotidiano, imaginando coisas mais importantes e belas que os olhos dos que nos aproximamos com amor. Em um instante que me via naqueles globos pensei em Deus, falei com Ele. Disse o quanto Ele era astuto! Imagina só, me colocar no olho de quem vejo para eu entender que me olho a mim mesma! Aí Mestre Cavalinho piscou e entendi que Deus piscou para mim do topo do contentamento de um pai que recebe uma filha que não visita sempre, não O vê frequentemente. Ele piscou alegre dizendo: "Não há outros". E me lembrei de Ramana Maharishi ao ser perguntado por um entrevistador sobre como deveria tratar os outros respondeu igual e singelamente: "Não há outros".

O Vitor chegou logo em seguida e exclamou no semblante o que eu mesma havia vivenciado. Mestre Cavalinho estava demasiado assustado, sofrido, dolorido. Ignorado em sua angústia tanto tempo e de repente visto por um bicho gente mulher e seis bichos gente homem, nosso amado se negou a entrar no caminhão como pôde. Foram horas que discorreram até que ali o pudéssemos colocar para em paz seguir viagem ao renascimento que acreditávamos ser possível. E foi. Mas não da forma que havíamos imaginado. O renascimento ocorreria em outro plano.

Doze dias se passaram até que recebemos a notícia que ele estava pronto para a cirurgia. Não porque tinha se recuperado e estava em plena forma para ela, mas porque o tempo permitia que sua infecção se agravasse a tal ponto que no período perdeu trinta e cinco quilos vertiginosamente. Então tínhamos que tomar uma decisão e esta certeza mesmo agora temos, se ele tinha chance, era ali. O câncer o consumia agressivamente. Ou melhor, consumia seu corpo... Mestre Cavalinho é livre! Como todos nós um dia nos realizaremos.

Tão difícil desassociar a morte do corpo da vida do espírito que segue. Nesta realização o amor transcende o plano físico e perpetua na eternidade seus encantos e magias. Não é necessário para o amor que estejamos juntos. Talvez seja necessário para uma relação na forma que definimos relacionamento como sendo a comunhão em tempo e espaço. O amor não necessita de corpos, se suspende do tempo! O amor demanda almas. Talvez por isto seja tão raro o amor, amor autêntico, genuíno, de letra maiúscula como disse uma irmã hoje ainda para mim. Amor. O que conhecemos é carência tantas vezes, validação. Solidão. E por não suportarmos estarmos sozinhos sofremos com a companhia dos que não nos amam, mas disfarçam sua própria solidão na nossa. Relacionamentos vazios. Amor preenche. Amor não precisa de corpo, requer espírito! Mas quantos de nós estamos de posse da nossa alma? Das nossas missões, dons e talentos? E como amar o outro quando o amor é para nós mesmos objeto de desejo?! Como oferecer ao outro o que não se tem para si? "Amar ao próximo" disse o Mestre - mas não negou que a labuta seria mais dura ao continuar sua orientação: "Amar ao próximo, como a ti mesmo". Então surge do infinito um ser de luz e desperta o que antes dormia e nos tornava sonâmbulos. Na presença dele avistamos o amor! O amor que jaz em nós e pode ser dado sem ser cobrado o recebimento. Porque amar basta.

Mestre Cavalinho trincou os corações mais duros, sensibilizava até os que eram surdos para voz de bicho animal. Quando um outro caboclo que ajudou no embarque se despediu de nós me olhou de maneira cortante dentro dos meus olhos dizendo: "Não deixa ele sofrer mais" - prendendo o choro incomum aos homens rústicos do campo. Mestre Cavalinho abriu mentes para que todos entendamos que cada vida é importante na sua plenitude. Colocou os arrogantes frente a frente com sua prepotência quando justificaram seu pouco caso em razões que ignoram o amor e que privilegiavam seu conforto - sem saber que este conforto e conformismo tirariam suas noites de sono; sem saber que se dormissem teriam pesadelos "E se fosse eu que sofresse invisível e outra versão de mim passasse à minha frente sem me ver, poderia eu mesmo me perdoar por saber que não recebia por não ter dado?" me indagou um homem que respondi com silêncio incentivando suas reflexões.

Amor é razão primeira e única. Se a resposta é outra, mudemos a nossa direção! Incrivelmente, quando por ele nos movemos em dado instante percebemos que na verdade ele tem nos movido e conduzido nossa vida! Só existe uma fração de segundo que o amor não faz por nós. No salto! Na decisão de se entregar aos seus caminhos e propósitos. Sem garantias. Algo tenebroso para o ego. Daí a oferta da carência que impõe primeiro sermos amados para amarmos. Garantias. E surpresa! Tantos de nós passam sem conhecer do amor porque a premissa dele é ação, é verbo. É amar! E estas garantias que secretamente tantos pedem, como a de serem amados, simplesmente distanciam amantes que poderiam ter sido, mas não foram. Bastaria que nos entregássemos! E se sofrêssemos, sofrêssemos extasiados por sofrermos de amor! Não da ausência dele pelo amor de Deus!

Mestre Cavalinho se entregou. Com o passar dos dias tivemos notícias que o comportamento dele havia mudado, que ele já estava menos irritado e mais calmo. Ainda assim o quadro de anemia avançava com brutalidade e o peso não aumentava. Se continuássemos, o câncer já havia nos mostrado sua fúria e o levaria dia após dia. A chance estava no risco. Risco que aceitamos. Em paz.

O Vitor se deslocou para São Paulo prontamente depois de ter recebido a solicitação do humano e proficiente doutor a cargo da missão. Entre o dia da chegada do amado e o de hoje, mantivemos contato virtual com duas das residentes que amorosa e pacientemente nos enviavam notícias dele todos os dias, sempre esperançosas da recuperação e cura do Mestre. Alimentavam em nós a fé que precisávamos nutrir. Seguíamos confiantes. Ao mesmo tempo que debaixo da minha pele existia uma indagação sobre o quadro - que não depunha em nada contra o que carinhosa e profissionalmente compartilhavam. Era uma sensação aguda que vinha de baixo, lá das entranhas, daquele lugar que as mulheres conhecem e sabem, no feminino instintivo que nos sustenta, lugar inacessível às palavras.


Pela manhã senti uma força bruta em mim e quando olhei pela janela da cozinha tive a surpresa de ver Mãe Divina Mestra Búfala deitada na frente de casa com seu rebento. Perto delas a matriarca, Mestra Ayahuasca, olhava à sua volta imponente. Foi a primeira vez desde o parto que elas desceram até aqui, nós nestes oito dias temos subido a montanha e às vezes até entrado na mata para vê-las. A inusitada presença delas me alinhou em força, como se dissessem que teríamos que ser fortes. Mesmo que estas linhas te acometam com a realização do grau de nossa loucura, admitimos que aqui diariamente conversamos com eles simplesmente por onde se sentam ou como andam... Quando fui ao encontro delas, elas já não estavam! Tive certeza das minhas sensações. Elas vieram somente para me trazer a mensagem. Força.

Durante o dia o Vitor e eu ficamos em contato, quando as notícias eram tensas demais, eu me retirava no pasto momentaneamente. E em um destes momentos encontrei as três no riacho, também inédito desde o nascimento. Da outra margem tirei meus chinelos, pisei na água, pedi licença para molhar meus pés. Senti a correnteza serena. "Todo rio desemboca no mar" refleti sorrateiramente em uma daquelas conversas que Mãe Natureza me provoca para me aproximar do Pai Celestial. E agradeci por tudo e por todos que me conduzem a este rio que um dia chegaremos. Pedi licença para a Mãe Divina naquele ser estonteante e me sentei ao lado da pequena Lakota. Contei da cirurgia, que tardava mais tempo do que imaginado. E então a pequena esticou seu pescoço enquanto eu acarinhava sua mãe e me lambeu amorosamente. Sorri. A vida em seu incessante fluxo seguia, me mostrando no carinho da criança que honrar o passado não permite que nos apeguemos a ele. Ou perderemos a visão do futuro, que ali me beijava.

A caminho da casa encontrei Mestra Celeste, uma vaquinha iluminada deitada que tomava sol. Sentei-me ao seu lado silenciosamente. E triste. Tremia por dentro. Não queria ser forte. E não queria que a vida continuasse de forma a me fazer despedir dos mais velhos e cuidar dos mais novos. Estava apegada! Sofria com a minha pequenez. Tudo isto transitava no meu coração enquanto em aparente silêncio compartilhava campo com ela. Tive a sensação profunda de não ser julgada pela minha fraqueza e egoísmo, mas acolhida nas minhas distorções do amor. Ela balançou sua cabeça no chão a ponto de levantar terra com seus chifres. Entendi que pedia para que me aproximasse. Assim fiz. Ela então deitou a cabeça no meu colo e ficou imóvel. Eu sempre emocionada com todos eles recebi amor que gostaria que chegasse até vc que me lê agora. Chegasse de tal forma que se vc não é vegetariano ou vegano, que se tornasse neste instante!

Levantei agradecida e me pus de novo no caminho para casa, mas fiz outra parada! Mestre Cavalinho Maia começou a relinchar deitado quando me viu, me chamando para perto dele. Fui até lá e me sentei atrás dele com as pernas esticadas, Falei que não poderia ficar muito tempo. Ele suspirou e simplesmente deitou a cabeça no meu colo com tamanha entrega que o peso dela me fez deitar também. Aquele sol a pino, o céu azul, o riacho correndo aquela água que era cada um de nós retornando ao mar, chegando em Deus. A cabeça dele pesada me imobilizando... Falei que precisava ir. Fui ignorada. Então com ele no meu colo lembrei de uma música que cantava quando desci para o pasto, uma que dizia "Serena no colo da Mãe Divina estou, no colo da Mãe Divina eu vou. Mãe Divina meu caminho ela conduz pelos trilhos, pelo jardim da perfeição (...). E minha loucura me fez sorrir de novo. "Confia" me disse Mestre Maia dentro do Mistério que aqui compartilhamos. Não ousei duvidar. Depois da minha realização ele imediatamente levantou a cabeça. Eu voltei para casa. Tocada por tudo que afirma para qualquer ser de bom senso minha insanidade e para mim só revelava a presença da face feminina de Deus me dizendo que não importa onde nós caminhemos, sempre no colo dela estamos.

Por conta da bateria do celular, perdi contato com o Vitor por duas horas. Neste período consegui comunicação com uma das solícitas residentes que compartilhavam conosco os desdobramentos da internação. Mais notícias da dificuldade do que era vivido. Mas chegava a notícia que a cirurgia tinha chegado ao fim e que nosso amado tinha lutado bravamente! A cirurgia não só chegou ao fim, mas ao fim com sucesso. Esperávamos agora que ele acordasse. Somente isto. Tudo isto.

Quis me conter para esperar seu despertar, mas contrariei o que falava naquele tal lugar indizível e postei as boas novas. Nenhuma notícia dele, que estava acordado. Então a nota cortante do Vitor. Sentido, choroso, exaurido pela força dispendida em batalha. Mestre Cavalinho tinha sucumbido ao sono. Para sempre. E embora o Vitor tenha igualmente acreditado, tido fé e se movido no que de mais sagrado existe nele para o serviço a este ser, ele também tinha clareza da dificuldade da missão - não naquele lugar onde as mulheres sabem sem explicar, naqueles que os homens explicam tão bem! Pois ao chegar constatou como havia se debilitado em função da doença. Não em um lugar esotérico, mas em um espaço igualmente talentoso pela observação e contemplação do presente momento ele viu sem véus.

Pela manhã quando falamos rapidamente trocamos as mesmas impressões. Sem que nos abalassem. Sentíamos uma força tamanha que poderíamos descer até Hades se o corpo de Mestre Cavalinho estivesse em seus braços - o arrancaríamos dele tomando a moeda do barqueiro que faria a travessia. Mas sabíamos que tomamos corpos, sem possuirmos almas. Era nosso conhecimento que nossa força era ilusória, era impotente em relação à vontade do Mistério.

Quando o Vitor e eu conseguimos nos comunicar de novo - com todas as dificuldades que a vida na roça oferece, como internet por rádio e telefone inexistente, perguntei se a passagem tinha sido tão angustiante quanto a de Mestra Égua Irena Sendler ou a de Mestra Vaquinha Maria Bonita. Ele me disse que não houve angústia nem dor, que ficou com ele em contato físico sob o olhar humano de toda equipe médica que respeitou a dignidade do momento em um daqueles instantes que somos imortalizados por transcendermos o efêmero deste mundo e penetrarmos na verdade da vida. No amor. Amor.

Foram duas semanas que Mestre Cavalinho nos deu aula particular. Mestre Cavalinho não era agressivo por sentir dor, muito pelo contrário, nos recebeu amorosamente. Tinha discernimento para saber, mesmo em momentos quando o sofrimento alucinava, a diferença entre quem o ignorava e quem o enxergava. 

Ontem quando o Vitor e eu nos despedimos para dormir comentei o quanto queria que ele tivesse um nome, não queria que ele fosse sem ser nomeado para a cirurgia. Queria que se alguém precisasse chamar por sua consciência, que lhe dirigisse a palavra com seu nome! Que tivesse uma identidade. Mas nenhum nome alcançou nossa consciência e mantivemos o tratamento. No hospital, porém, ele foi nomeado. Quando o Vitor o internou disse que ainda não tinha nome, mas seria um mestre. Então a equipe médica o chamou, com honra e respeito, não de um mestre. Mas de Mestre! Assim foi conhecido. Não foi anônimo nem artigo indefinido. Teve identidade.

Amado Mestre que nos despertou para a consciência que embasa a sabedoria do Bhagavad Gita: "aja sem apego aos frutos da ação". Ainda que nós que despertamos lentamente para conseguirmos enxergar o outro, ainda que calejemos nossos corações nos percalços da vida terrena, ainda assim eu agradeço. Eu agradeço porque não somos insensíveis aos gritos dos sofredores. Porque não nos são invisíveis. Eu agradeço porque não sucumbimos ao dito bom senso que nos engana dizendo que nada podemos! Eu agradeço porque nos unimos para salvar vidas em vez de nos juntarmos para em vanidade falar delas. Eu agradeço por sentir. Por sentirmos. Eu agradeço cada um de vcs com a gente.

Nosso Mestre conheceu o amor. E tendo dedicado sua missão ao despertar de uma nova consciência planetária não permitiu meramente que nós o conhecêssemos enquanto bicho animal. Permitiu que nos conhecêssemos como irmãos. Porque assim o amamos. Todos nós. E na oportunidade, bastasse a graça da irmandade, conhecemos o amor! Amor que transforma e que cura. Pondero que Mestre Cavalinho não foi curado porque veio para nos curar. Nos curar do desamor, das doenças das mentes pequenas que reclamam por serem vítimas de si mesmas. Mestre Cavalinho mostrou a força que um grupo de bicho gente tem para alterar destinos - sem jamais nos esquecermos que não assinamos a obra. A obra é do Mistério e dEle os desfechos. Deste ponto de vista, Mestre Cavalinho nunca adoeceu, mas teve na doença sua alforria e nela também a conclusão de sua elevada missão.

Mestre Cavalinho era esperado nestes pastos, mas não podemos dizer que não está aqui. Porque fica conosco não o corpo de alguém ou nossa relação com ele, permanece o que independe de tudo que podemos explicar e penetra no Mistério do que é sagrado segredo definhando palavras. Sabe quem sente.

Fica conosco a memória de alguém que depois de ter vivido deixou atrás de si o mérito de ter ancorado mais compaixão, consciência e amor nesta esfera. Fica a lembrança de um olhar e de uma epifania que me remetem a mim mesma, a poder me ver na dor e no amor do outro - sabendo que somos um. Que possamos seguir seus cascos e quem sabe um dia aspirarmos nos igualar à sua proeza, a de deixar depois de nós um mundo melhor do que o que encontramos ao chegar.

Agradeço aqui, ainda muito emocionada e comovida, com lágrimas que exaltam a grandeza de sua breve passagem - Mestre Cavalinho era moço! -, em nome do Vitor e em meu nome, representando sessenta seres de luz aqui abrigados, agradeço todo ser que auxilia a missão do Santuário, a de resgatar bicho animal e conscientizar bicho gente. E não posso deixar de agradecer - igualmente emocionada - pelo divino que vejo mover o Vitor no serviço que presta aos Mestres Animais, especialmente nas curas físicas que propicia com seus dons, aliviando suas dores, sendo confidente delas.

Sigamos firmes na senda, sem nos abatermos, para que honremos com evolução quem passou por nós. Mestre Cavalinho se libertou da prisão que seu corpo havia se tornado, cumprindo uma orientação superior que implora nosso despertar. Sigamos em propósito para que vida alguma seja em vão - incluindo a nossa própria. Estejamos a serviço do amor.